A incrível aristocracia das Big Techs
Seriam as grandes corporações a nova aristocracia ou a nova oligarquia?
Em um de seus vídeos publicados na internet, o renomado psicólogo Jordan Peterson, trata sobre sucesso e distribuição de riquezas. Nessa palestra, ele apresenta os conceitos da distribuição de Pareto e da Lei de Price. Em apertada síntese, o professor da Universidade de Toronto explica ao longo do vídeo que, segundo a distribuição de Pareto, 80% do trabalho produzido em uma equipe é realizado por apenas 20% dos funcionários. Já a Lei de Price, foi desenvolvida quando o pesquisador que deu nome à teoria notou que a metade do trabalho científico do mundo havia sido produzido pela raiz quadrada do número total de cientistas ativos.
Ambas teorias se confirmam em grande medida, havendo uma distinção a depender da escala que se está observando: Pareto funciona independentemente da escala, enquanto para a Lei de Price, o número de funcionários é significativo, pois depois de determinado valor, a quantidade de pessoas com produtividade insignificante seria sempre uma parcela esmagadora em face do total que efetivamente produz.
A tese defendida por Peterson é que a razão proposta por essas ideias se expande para todos os campos da produção humana que dependam da criatividade individual como variável. E o que isso significaria? Significa que é possível determinar, por meio de fórmulas matemáticas, o que os filósofos da antiguidade já afirmavam: na sociedade naturalmente surgem aqueles que se destacam da maioria das pessoas por serem excepcionais ou melhor qualificados.
Esse fenômeno facilmente explica o surgimento da chamada aristocracia enquanto casta social. Pessoas cujo status tem seus alicerces na distinção natural de poucos indivíduos bem-sucedidos dos demais membros medíocres da sociedade. Na história, não foi incomum que famílias inteiras se estruturassem ao redor de algumas dessas pessoas de distinção, clamando para elas próprias os méritos conquistados originalmente por parentes de renome notório. E daí surge também a confusão conceitual entre o que seria a nobreza e a aristocracia.
O poeta e pensador político do século XIII, Dante Alighieri, famoso pelo poema A Divina Comédia, escreveu em sua obra filosófica inacabada Convívio sobre essa condição. O autor desenvolveu que, ainda que houvesse quem se declarasse nobre por pertencer a certas linhagens, Deus não faz nobre aqueles oriundos de determinadas estirpes, mas sim, indivíduos específicos. Dessa maneira, a estirpe não faz nobre os indivíduos, são os indivíduos que têm o potencial de tornar sua estirpe nobre. Naturalmente, a perspectiva de Dante era eminentemente religiosa, entendendo ele que Deus agraciava determinados indivíduos com nobreza de espírito. Mas, como acabamos de ver, essa perspectiva de que pessoas singulares desenvolvem um potencial que as destaca da maioria esmagadora das pessoas não parte apenas de uma perspectiva religiosa, podendo ser facilmente demonstrada pela natureza das coisas ou mesmo pela filosofia.
Dante era um profundo admirador da obra de Aristoteles, e tentou empenhar o pensamento aristotélico com verdadeira qualidade divina. Na minha humilde opinião, Dante acaba se equivocando quando defende em Convívio que o mundo fosse inteiramente governado por um Monarca supremo que seria magnanimamente perfeito. É claro que essa visão se alinhava com as ideias que surgiram em sua época e nas décadas seguintes, de que o rei ou imperador seriam seres indicados por Deus para sentar em seus tronos e governar as pessoas imperfeitas.
Todavia, o próprio Aristoteles tinha pesadas reservas quanto ao modelo monárquico, que pode perfeitamente se corromper na tirania, acreditando que a melhor forma de governo seria aquela conduzida pelos nobres aristocratas (conclusão não surpreendente, considerando sua própria origem abastada). Mas, mesmo a forma de governo aristocrática, complementa o filósofo, está sujeita à corrupção a ela correspondente, levando à oligarquia. Mas é interessante pontuar um pouco mais sobre o significado da nobreza para Aristoteles.
O nobre não tem essa qualidade por vir de alguma linhagem, mas por agir segundo a ética da virtude, buscando a eudaimonia e, por esse meio, realizar o bem na sociedade. Aqui faço uma ressalva de que a eudaimonia aristotélica em nada se assemelha ao eudemonismo utilitário de Bentham e Stuart Mill, que beiram o hedonismo, na ideia de que o indivíduo precisa da liberdade para buscar aquilo que lhe faz feliz, independentemente do que seja, desde que não atinja terceiros. A felicidade por essa perspectiva é algo sem limites e pode ser buscada de qualquer forma, ainda que por meio do vício (o oposto da virtude). Obviamente, estou simplificando o conceito para não precisar traçar um tratado sobre cada uma dessas ideias, mas que serão valiosas logo mais.
Sendo assim, a eudaimonia de Aristoteles, que consequentemente gera a felicidade na sua realização, se baseia no bem prático, ou seja, na concretização do bem indiretamente por meio de ações do indivíduo (praxis). Dessa forma, aquilo que é moralmente bom pode ser realizado por meio de uma vida de propósito que ao fim e ao cabo afeta positivamente a comunidade. Kant critica esse posicionamento dizendo não se tratar de uma teoria moral, uma vez que é impossível deduzir o que é bom para uma generalidade abstrata de pessoas (ética), devendo o indivíduo se guiar pelo que é correto. Como a decisão entre certo e errado é eticamente demonstrável, isso abria caminho para sua teoria moral fundada no denominado imperativo categórico.
A teoria moral kantiana não se importa se o indivíduo alcançou a felicidade, mas se ele agiu de forma a merecer a felicidade. Aristoteles, por sua vez, vai no sentido de tentar definir se as consequências da ação moral do indivíduo tem o potencial de lhe gerar a felicidade. No entanto, o que parece ter fugido à percepção de Kant na proposta de Aristoteles é que a ação moralmente virtuosa do indivíduo não é realizada em nome do bem, no sentido de que sua contribuição com o bem complexo social se realiza de maneira indireta (não sendo um fim em si mesma), que culmina num bem para a cidade e a vida comunitária (polis).
Dessa feita, não há uma relação de causa e efeito entre a atitude virtuosa e o bem por ela alcançado, mas sim, a ideia de que a ação moralmente baseada na virtude é parte do todo que constitui a própria noção de ser-humano. Dessa forma, agir moralmente lastreado na virtude é parte necessariamente integrante da eudaimonia e não um meio para sua consecução.
Mas o que seria agir com virtude? Grosseiramente falando, agir visando cumprir o objetivo daquilo para o qual você se dispõe a fazer e para o que possui afinidade. Normalmente, se entende por aquilo para o que cada um teria nascido para fazer, no caso, sua vocação, de forma a completar seu papel na sociedade. Não por alguma obrigação externa, mas porque isso certamente trará felicidade e realização, gerando ganhos para a sociedade de forma indireta. Aí se encontra a eudaimonia.
Interessante como essa perspectiva tange a própria ideia de Ayn Rand sobre a virtude do egoísmo ou mesmo a teoria da mão invisível de Adam Smith. Claro que Aristoteles está mais próximo de Smith que Rand, mas as semelhanças são inegáveis. A teoria aristotélica é, portanto, não uma teoria sobre o que deve ou não ser feito, sobre obrigações ou deontologia. É uma teoria sobre o florescimento humano, sobre o bem social que pode ser atingido quando se age de forma virtuosa e como os elementos da felicidade alcançados por esse estágio contribuem para o bem-estar comunitário.
Cada um tem a escolha de seguir por esse caminho, de fazer da virtude um hábito, concretizando o ethos humano, ou não. Por certo, quando Aristoteles fala do ethos humano, não está dizendo que o ser-humano é naturalmente bom, como gostariam alguns pensadores, como Rousseau ou o próprio Marx, mas sim que a realização da humanidade apenas se concretiza pelo hábito das virtudes. O que fomenta o bem na sociedade não é a ação individual programada, mas os seus resultados indiretos. Esse bem é realizado quando o homem age na política, qual seja, no sentido de buscar amenizar a realidade ou torná-la melhor que é, mas sem jamais acreditar na perfeição, uma vez que a mente humana — i.e. o ser-humano, jamais pode ser entendido como perfeito (ou perfectível).
Não cabe aqui entrar nos detalhes sobre as virtudes aristotélicas, mas vou me focar na sua concretização, possível por meio do exercício habitual da natureza de cada pessoa. Muitas pessoas se confortam com um mínimo do exercício das virtudes, quando não se refestelam nos vícios da alma humana, mas aqueles que se dedicam a um caminho vocacional voltado para a realização habitual da virtude, naturalmente são conduzidos à chamada sabedoria prática. Esses são aqueles que podem ser, finalmente, chamados de nobres.
Percebam então que a nobreza é a escolha pessoal pela realização individual das virtudes, não buscando que isso crie o bem ou para demonstrar o bem de seus atos, mas exclusivamente por ser o correto a se fazer. O que se reconhece como louvável é a realização da eudaimonia e não sua ânsia por demonstração, tão conhecida hoje como a “sinalização de virtude”. Não que o nobre não possa desejar reconhecimento, até porque a nobreza não rejeita o autorreconhecimento. Aristoteles diria, inclusive, que o verdadeiro amor pelo outros deriva do amor próprio corretamente compreendido. Os próprios heróis da antiguidade, reconhecidos pelo filósofo como almas grandiosas e nobres, muitas vezes se mostram com orgulho e autoestima. O problema é quando a virtude deixa de ser o hábito louvável daquele que procura ser uma pessoa melhor para se tornar a demonstração de — falsa — virtude do mesquinho, consequentemente, verdadeiro vício (vaidade). O vício pode corromper uma comunidade mais rapidamente que a virtude consegue enaltecê-la.
Restam então distinguidos os conceitos de aristocracia e nobreza, virtude e vício. Mas o que isso tudo tem a ver com as Big Techs? Observando a história, percebemos o surgimento natural daqueles que se destacavam na sociedade, fosse por serem escolhidos por Deus, em razão da natureza das coisas ou mesmo pela eudaimonia atingida por alguns. Essas pessoas que se destacaram tiveram a oportunidade de repassar os ensinamentos que as colocaram nessas posições distintas a seus herdeiros, o que propiciou o surgimento da aristocracia enquanto casta social, especialmente durante as eras antiga e medieval.
Essa aristocracia com muita facilidade esqueceu de corresponder à ética da nobreza que lhes foi legada, se corrompendo em verdadeiras oligarquias que se preocupavam exclusivamente com os seus e como se manter nessa condição de destaque, descolados absolutamente do mundo real com o qual deveriam possuir verdadeira obrigação moral. Tão logo essa fragilidade ética se destacou, não demorou muito até que novos nobres, no sentido de que as novas pessoas que vieram a se destacar entre seus pares, a chamada burguesia, destronassem primeiro esses oligarcas e por último os próprios reis e suas linhagens.
Em especial nos Estados Unidos, esses novos nobres foram capazes de construir uma sociedade de virtudes, o que possibilitou a ascensão de massas como jamais se viu no passado, de maneira que as virtudes como a liberdade e coragem se tornaram os meios para conquistar a felicidade e realizar a nobreza (Land of the Free, Home of the Brave). Por puro preciosismo, ressalto o que disse alguns parágrafos atrás, quando destaquei que jamais houve ou haverá perfeição nesta Terra, e, da mesma forma, mesmo os Estados Unidos da América foram — e ainda são — um país de idiossincrasias que abrigam qualidades junto a defeitos, mas indiscutivelmente, foi o auge da civilização humana por muitas décadas.
E não por acaso esse país se tornou o berço das Big Techs, que surgiram sob alicerces da busca da felicidade, exercício das virtudes e a concretização do bem na sociedade de maneira não intencional; ainda na linha da nova nobreza burguesa que surge derrubando a antiga nobreza aristocrática. Hoje, essas Big Techs concentram em suas mãos tanto poder (econômico e de outros tipos) que aparentam terem deixado para trás as virtudes que lhes possibilitaram galgar esse espaço em primeiro lugar. Não mais parecem lutar pelos valores que lhes oportunizou alcançar seu patamar, muitas vezes agindo buscando reservas de mercado e desejando sinalizar virtudes ao ponto de cometer crimes contra a liberdade que tanto lhes foi útil quando iniciaram sua ascensão.
Assim como a corrupção da aristocracia e de muitas monarquias abriu caminho para que essas formas de governo ruíssem, a corrupção da nova nobreza tem potencial de fazer o mesmo com a democracia liberal que surgiu durante o Iluminismo. Atualmente, as Big Techs, que chegaram por seus méritos onde estão tem a oportunidade de agir de maneira nobre ou oligárquica, podendo retomar o verdadeiro caminho da virtude ou abraçar em definitivo os vícios da humanidade. Suas escolhas neste momento vão pavimentar nossos destinos: irão contribuir com sua parte para o florescimento do espírito humano por meio do fomento das virtudes, ou irão dobrar a aposta nos vícios apenas para serem derrubados por novos nobres que naturalmente se apresentarão, assim como ocorreu no passado?
Referências
Pietropaolo, Domenico. Dante’s Concept of Nobility and the Eighteenth-Century Tuscan Aristocracy: An Unknown Study of the Convivio. L’homme et la nature, Volume 5, 1986, p. 141–152.
Romanazzi Tôrres, Moisés. Aristocracia e Nobreza em Dante Alighieri. Mirabilia, Núm. 9 (Desembre 2009), p. 229–248.
Smith, Steven B. Goodness, Nobility & Virtue in Aristotle’s Political Science. Polity. Vol. 19, №1 (Autumn, 1986), pp. 5–26 (22 pages). Published By: The University of Chicago Press.
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