VOTO completo do Ministro FLÁVIO DINO na ADI 6457
“Traidor da Constituição é traidor da Pátria”.
(Trecho do Discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Federal Ulysses Guimarães, em 5 de outubro de 1988)
Este voto na ADI 6457, ora em julgamento, é proferido em data que remete a um período abominável da nossa História Constitucional: há 60 anos, à revelia das normas consagradas pela Constituição de 1946, o Estado de Direito foi destroçado pelo uso ilegítimo da força. Em consequência, durante décadas, regredimos a um modelo jurídico assentado em uma Constituição puramente semântica, consoante conhecida classificação de Karl Loewenstein:
“La conformación del poder está congelada en beneficio de los detentadores fácticos del poder, independientemente de que éstos sean una persona individual (dictador), una junta, un comité, una asamblea o un partido. Este tipo se puede designar como constitución semántica. Si no hubiese en absoluto ninguna constitución formal, el desarrollo fáctico del proceso del poder no sería notablemente diferente. En lugar de servir a la limitación del poder, la constitución es aquí el instrumento para estabilizar y eternizar la intervención de los dominadores fácticos de la localización del poder político.”
Tal tragédia institucional resultou em muitos prejuízos à nossa Nação, grande parte irreparáveis. No plano das instituições jurídicas, os danos se materializaram, por exemplo, nas brutais e imorais cassações das investiduras de três ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal: Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. Eles estão vivos na memória jurídica do Brasil; igual honra não têm os seus algozes – incluindo os profissionais do Direito que emprestaram os seus conhecimentos para fornecer disfarce de legitimidade a horrendos atos de abuso de poder.
São páginas, em larga medida, superadas na nossa história. Contudo, ainda subsistem ecos desse passado que teima em não passar, o que prova que não é tão passado como aparenta ser.
Um desses impressionantes resquícios está espelhado na necessidade desta Suprema Corte pronunciar-se sobre assuntos que seriam vistos como exóticos na imensa maioria dos Tribunais do mundo. É o que vemos na presente ADI, em que se busca fixar balizas para as atribuições das Forças Armadas, à luz do artigo 142 da vigente Constituição.
Eventos recentes revelaram que “juristas” chegaram a escrever proposições atinentes a um suposto “Poder Moderador”, que na delirante construção teórica seria encarnado pelas Forças Armadas. Tais fatos lamentavelmente mostram a oportunidade de o STF repisar conceitos basilares plasmados na Constituição vigente – filiada ao rol das que consagram a democracia como um valor indeclinável e condição de possibilidade à concretização dos direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs.
Acerca da inexistência do tal “Poder Moderador”, invoco importante Parecer da Câmara dos Deputados, aprovado em junho de 2020 pelo então Presidente da Casa, Deputado Federal Rodrigo Maia, lavrado pelos Drs. Leonardo Barbosa (Secretário-Geral da Mesa); Roberto Carlos Pontes (Secretário-Geral da Mesa Adjunto de Coordenação Técnico-Jurídica) e Alexandre Sankievicz (Chefe da Assessoria Técnico-Jurídica). Destaco da mencionada peça técnica:
“Não existe país democrático do mundo em que o Direito tenha deixado às Forças Armadas a função de mediar conflitos entre os Poderes Constitucionais ou de dar a última palavra sobre o significado do texto constitucional.
Por essas razões, naturalmente o artigo 142 da Constituição Federal não permite ‘intervenção militar constitucional’, seja em caráter permanente ou pontual. Interpretar esse dispositivo no sentido de conferir às Forças Armadas o poder de sobrepor-se a decisões de representantes eleitos pelo Povo ou de quaisquer outras autoridades constitucionais a pretexto de ‘restaurar a ordem’ consiste em perpetrar verdadeira fraude ao texto constitucional. Implica em tentativa de instrumentalizar a Carta da República e de capturar uma instituição de Estado da envergadura das Forças Armadas por interesses governamentais passageiros.”
Com efeito, lembro que não existe, no nosso regime constitucional, um “poder militar”. O PODER é apenas civil, constituído por TRÊS ramos ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente. A tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna, como aliás consta do artigo 142 da Carta Magna.
Este Tribunal já teve a oportunidade de elucidar, pelas palavras do ilustre presidente Luís Roberto Barroso, em decisão no MI 7311/DF:
“Processo Constitucional. Mandado de Injunção. Separação de Poderes. Forças Armadas e Poder Moderador. Art. 142, CF. ………………………………………………………… O Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores. Sob o regime da Constituição de 1988 vigora o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), no qual os Poderes são independentes, harmônicos e se controlam reciprocamente. Não se deve esquecer, tampouco, a importância do controle social, de grande relevância nas sociedades abertas e democráticas. Nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao art. 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Embora o comandante em chefe seja o Presidente da República, não são elas órgãos de governo. São instituições de Estado, neutras e imparciais, a serviço da Pátria, da democracia, da Constituição, de todos os Poderes e do povo brasileiro. ……………………………………………………”
Com esses fundamentos, considero que o eminente Relator desta ADI, ministro Luís Fux, andou bem ao consignar na parte conclusiva do seu voto:
“(i) A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; (ii) A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República; (iii) A prerrogativa do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos outros poderes constitucionais – por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados -, não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si; (iv) O emprego das Forças Armadas para a ‘garantia da lei e da ordem’, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais poderes, na forma da Constituição e da lei.”
Ao acompanhar esse entendimento, faço um acréscimo de natureza instrumental, voltado a concretizar a máxima eficácia desta decisão judicial. Recordo KONRAD HESSE:
“A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar ‘a força que reside na natureza das coisas’, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade de Constituição.”
Assim sendo, visando ampliar a “convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional” acerca do ora decidido, acresço ao voto do Relator a determinação de que, além da Advocacia Geral da União, a íntegra do Acórdão seja enviada ao Exmo. Ministro de Estado da Defesa, a fim de que – pelos meios cabíveis – haja a difusão para todas as organizações militares, inclusive Escolas de formação, aperfeiçoamento e similares. A notificação visa expungir desinformações que alcançaram alguns membros das Forças Armadas – com efeitos práticos escassos, mas merecedores de máxima atenção pelo elevado potencial deletério à Pátria.
Dúvida não paira de que devem ser eliminadas quaisquer teses que ultrapassem ou fraudem o real sentido do artigo 142 da Constituição Federal, fixado de modo imperativo e inequívoco por este Supremo Tribunal.
Pelo exposto, acompanho o Relator, com a ressalva consistente na determinação de notificação acima delineada.
Brasília, 31 de março de 20
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