24 C
pt-BR

Complexo de Arlequina - A Cultura da Desconstrução e o Fascínio pelo Crime


LUIZ FERNANDO RAMOS AGUIAR




Um assunto que tem perturbado minha mente por anos é por que tantas adolescentes e jovens, que vivem em comunidades dominadas por quadrilhas de narcotraficantes, se sentem tão atraídas pelos criminosos. Mesmo sabendo das consequências violentas de não cumprir as normas estabelecidas por seus namorados e parceiros do crime, por que se submetem a esse risco? Qual é o motivo de preferirem arriscar a própria vida, construindo um relacionamento fadado a um desfecho trágico, em vez de se envolverem com uma pessoa que ganha a vida honestamente, como é a realidade da maioria esmagadora dos moradores de favelas?

Parece que os valores tradicionais, como construir uma família, levar uma vida honesta, casar e ter filhos, têm se tornado cada vez mais anacrônicos. Até mesmo o desejo por carreiras estáveis, como medicina, advocacia ou engenharia, se tornou menos cobiçado do que profissões completamente instáveis e de consistência duvidosa. Um exemplo disso é o influenciador digital, se é que essa atividade pode ser classificada como profissão. Vivemos em uma época em que cultivar valores tradicionais tornou-se sinônimo de ser uma pessoa ultrapassada, em dissonância com os valores atuais, que celebram a desconstrução e a rejeição dos pilares que construíram nossa civilização ocidental.

Na esteira dessa nova cultura, vive-se um culto à feiura e ao orgulho de ser ignorante. As roupas mais caras se assemelham a farrapos, ou então misturam mau gosto com uma criatividade estética agressiva. A música popular é tão refinada quanto jingles políticos, e qualquer obra com mais de dois minutos é demais para manter a atenção da maioria dos ouvintes modernos. A literatura nacional está em estágio terminal; saudosos são os tempos em que, em uma mesma geração, podíamos desfrutar de autores como Drummond, Guimarães Rosa e Jorge Amado.

Vivemos a era do emburrecimento. Pela primeira vez na história, a geração mais jovem apresenta um QI menor do que o de seus pais.[1] O crédito pelo decréscimo na inteligência das novas gerações tem sido atribuído às novas tecnologias digitais, mas não dou tanto crédito às redes sociais e aos gadgets, apesar de suas evidentes contribuições para o aumento do número de idiotas na população. Como ferramentas, a existência dessas tecnologias não é o problema, mas sim o modo como as pessoas as utilizam.

A raiz do problema é muito mais profunda. Ela decorre de uma corrosão progressiva e intencional da alta cultura, da relativização dos valores e da inversão dos conceitos básicos que sempre mantiveram o Ocidente de pé. As escolas críticas, que dominaram basicamente toda a esfera acadêmica, criaram uma cultura de destruição. Na ânsia de questionar, transformar e modelar a realidade em prol do desenvolvimento coletivo, esqueceram que, primeiro, é preciso entendê-la.

Como a influência acadêmica acaba contaminando toda uma geração de profissionais, intelectuais e políticos formados em universidades, o resultado não poderia ter sido diferente: conseguiram mudar a realidade. O problema está no que a transformaram.

No campo da segurança pública, conseguiram transformar os profissionais de polícia nos inimigos públicos número um. Movimentos como Defund The Police, que defendem o corte de verbas para as forças policiais como forma de melhorar a segurança, proliferam nos Estados Unidos. No Brasil, as polícias são classificadas como corporações opressoras, que operam sob a lógica do racismo estrutural, promovendo o genocídio da população negra e pobre. A lógica de criminalização da polícia se expande e é aceita como discurso de consenso científico, mesmo que o termo seja um paradoxo.

Se os policiais são os vilões, os heróis se tornaram os criminosos, vistos como escravos de uma condição decorrente da falta de oportunidades e da exclusão social promovida pelos "capitalistas malvadões". Esses criminosos são apresentados como não tendo outra escolha senão roubar, matar, estuprar e traficar. Na verdade, defendem que eles precisam de ajuda para se ressocializar, pois seriam vítimas de uma sociedade injusta.

Na busca por heróis e vilões de uma sociedade desigual, nossos amantes da problematização se esqueceram dos principais atingidos pelo fenômeno criminal: as vítimas. Quando o foco de criminalistas, sociólogos, juristas, jornalistas e intelectuais está na proteção e reabilitação dos criminosos, as pessoas que sofreram com suas ações acabam sendo esquecidas. Afinal, as vítimas são a prova viva e a lembrança constante de que, apesar dos malabarismos intelectuais, os criminosos optaram por realizar seus desejos por meio da violência, especialmente contra as pessoas mais frágeis e com menos possibilidades de defesa.

A desconstrução dos modelos tradicionais de heroísmo, coragem e sacrifício dos quais os policiais claramente fazem parte é o resultado esperado e, atualmente, consolidado. Mas não são apenas os policiais, os pais de família, o trabalhador comum ou qualquer pessoa que se conforme em exercer um papel tradicional são considerados ultrapassados.

Nas favelas, ou comunidades, os criminosos, que já foram glamourizados pelo mainstream cultural e acadêmico, tornam-se o referencial para uma geração de jovens. Nesse cenário, as meninas enxergam naqueles “meninos do tráfico” o modelo de masculinidade validado. Elas veem nos traficantes os guerreiros da nova cultura: discriminados, perseguidos e injustiçados, mas que buscaram sua independência por meio do poder das armas e das ações criminosas. Dessa forma, eles se tornam o objeto do desejo, os mais cobiçados — se não por todas, pelo menos por uma parcela significativa das mulheres que crescem nesse caldo cultural. Muitas vezes, o compromisso extrapola o relacionamento romântico, e as meninas começam a atuar nas atividades das organizações criminosas. Trata-se do "complexo de Arlequina": jovens mulheres inspiradas em um modelo imaginário de anti-heroína, que acreditam estar vivendo uma grande aventura em seu relacionamento com um criminoso.

Nessa aventura, as Arlequinas da vida real não medem as consequências de suas escolhas. No romantismo de suas aventuras adolescentes, dedicam suas vidas aos mais cruéis e perigosos criminosos em atividade no país. Muitas vezes, o preço a ser pago por essa escolha é a própria vida. Quando têm sorte, são "apenas" surradas e humilhadas, servindo de exemplo para toda a comunidade. Os julgamentos seguem as regras impostas por seus “amores”, que não hesitam em raspar seus cabelos, surrá-las e registrar tudo em vídeo, para que a humilhação sirva de lição a qualquer outra que ouse desobedecer a seus caprichos.

Essa situação é apenas um sintoma de uma doença muito mais grave: a degradação dos fundamentos de nossa sociedade, que está destruindo não apenas a nossa segurança física, mas principalmente dilacerando a inteligência e o espírito de nossa geração. Enfrentamos uma crise sem precedentes, que nos faz retroceder aos níveis mais bárbaros, pré-cristianismo, onde a vida humana estava abaixo da propriedade privada e onde o culto ao hedonismo estava acima da caridade e da compaixão. Viver nesse novo mundo é o grande desafio de nossa geração.

Postagens mais antigas
Postagens mais recentes

Postar um comentário