Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar

O futebol brasileiro sempre foi motivo de orgulho nacional, capaz de reunir gerações sob as tradições de clubes centenários. Ele une gerações em torno de uma paixão, mas existe uma mácula que mancha o espetáculo e restringe o acesso de milhares de pessoas que poderiam estar frequentando os estádios e ajudando na preservação da maior tradição brasileira, além de ampliar uma economia pujante que gira em torno do esporte: a violência das torcidas organizadas.

O episódio mais recente dessa mazela foi protagonizado pelas torcidas do Santa Cruz e do Sport no último sábado, 1º de fevereiro. Os torcedores dos dois times se envolveram em confrontos violentos pelas ruas do Recife momentos antes do jogo pelo Campeonato Pernambucano, que ocorreu no estádio do Arruda.

Briga entre os torcedores do Santa Cruz e Sport no Recife

As redes sociais foram invadidas por vídeos mostrando cenas de brigas. Os torcedores usavam pedras e pedaços de pau para agredir rivais. Um dos envolvidos nos confrontos chegou a ser abusado sexualmente. Mesmo com um efetivo de 680 homens, a Polícia Militar teve dificuldades para controlar a baderna. A confusão na cidade foi tão grande que os comerciantes foram forçados a fechar seus estabelecimentos nos locais onde as torcidas se enfrentavam.

A baderna resultou na prisão preventiva de 13 torcedores. Além disso, a Justiça de Pernambuco, juntamente com a governadora Raquel Lyra, o desembargador Mauro Alencar e o procurador-geral de Justiça, José Paulo Xavier, baniu as torcidas organizadas dos clubes envolvidos dos estádios por cinco jogos em todas as competições realizadas no estado. A Justiça também determinou que fosse implementado um sistema de reconhecimento facial para identificação dos torcedores nas entradas de todas as arenas de Pernambuco.

Mas este não é um episódio isolado. A história do futebol brasileiro é marcada por dezenas de episódios violentos envolvendo membros de torcidas organizadas. Os enfrentamentos podem ocorrer dentro dos estádios, em suas imediações ou até mesmo em outras localidades das cidades que cediam jogos. Uma situação que transforma os eventos desportivos em um verdadeiro problema de segurança pública.

A TRAGÉDIA DO PACAEMBU

Um dos episódios que pode ser considerado um marco ficou conhecido como: A tragédia do Pacaembu. O episódio ocorreu no dia 20 de agosto de 1995, no jogo São Paulo x Palmeiras pela final da Supercopa São Paulo de Juniores. Não houve cobrança de ingressos. Após o gol que deu o título para o Palmeiras, os torcedores se aproveitaram do pequeno efetivo policial no estádio para invadir o gramado. Utilizando pedaços de madeira retirados de uma obra que estava em andamento no local, os torcedores começaram a se degladiar no gramado, um confronto violento transmitido ao vivo em Tv aberta. O saldo do confronto foram 102 pessoas feridas. Entre os feridos estava Marcio, que viria a falecer oito dias depois em razão dos ferimentos sofridos durante os eventos.[1]

Tragédia do Pacaembu

OS HOLLIGANS, INGLATERRA

Mas a questão da violência entre as torcidas não é um problema exclusivamente brasileiro. Durante muitos anos, a Inglaterra foi vítima de episódios semelhantes, que culminaram no caso do estádio Heysel, na Bélgica, há aproximadamente 39 anos. A arena foi palco de um jogo entre o Liverpool e a Juventus, e um confronto entre as torcidas antes da partida resultou na morte de 39 pessoas e em mais de 600 feridos, no dia 29 de maio de 1985.

Hooligans

As autoridades de segurança pública já previam a possibilidade de confronto e tomaram diversas medidas para tentar evitá-lo, como: aumento do efetivo policial, controle sobre a venda de bebidas alcoólicas e forte fiscalização nas entradas do estádio. Contudo, as ações não foram executadas de forma plena e, assim, tornaram-se ineficientes para evitar a tragédia.

Na época, a Inglaterra estava no auge do movimento hooligan e foi considerada culpada pelos eventos. O resultado foi o desenvolvimento de um plano nacional de segurança, com metas e objetivos de médio e longo prazos. Infelizmente, foi preciso mais um desastre envolvendo torcedores para que medidas efetivas fossem tomadas.

Em 15 de abril de 1989, no estádio Hillsborough, em Sheffield, um jogo entre o Liverpool e o Nottingham Forest acabou resultando na morte de 96 pessoas, sendo considerado o pior de todos os desastres do futebol inglês. Uma série de erros na organização do evento causou a superlotação do estádio. Os torcedores acabaram imprensados nas grades que separavam as arquibancadas do gramado. As pessoas que não conseguiram pular as barreiras de contenção foram esmagadas e asfixiadas pela multidão.[2]

O evento foi o impulso que faltava para o governo de Margaret Thatcher dar a devida importância ao plano nacional, que acabou sendo implementado de fato com o Relatório Taylor, apoiado pela primeira-ministra.

O RELATÓRIO TAYLOR

O Relatório Taylor trouxe uma revolução para o futebol inglês. Muitos estádios foram demolidos, e outros foram modernizados. Os que não se adequaram tiveram suas lotações reduzidas. Além disso, progressivamente, os setores onde os torcedores permaneciam de pé foram eliminados, melhorando a organização das entradas das pessoas nos estádios.

O relatório foi desenvolvido pelo juiz Peter Taylor, responsável pelo inquérito do caso Hillsborough. O documento previa uma série de medidas para a modernização do futebol inglês e a diminuição da violência entre os torcedores.[3]

Peter Taylor

Uma das medidas foi a criação dos stewards, civis especificamente treinados para organização de multidões, sem o caráter repressivo da polícia. Outra foi a obrigatoriedade dos clubes em disponibilizarem assentos em todos os setores dos estádios, para acabar com os locais onde os torcedores ficavam de pé. As grades que separavam os torcedores do campo também foram retiradas, e as vias de acesso e saída dos estádios foram reestruturadas.

Outra medida recomendada pelo relatório foi a instalação de sistemas de CCTV (Circuitos Fechados de TV) para monitoramento das pessoas dentro das praças esportivas. O sistema tinha como objetivo facilitar a identificação dos torcedores que davam causa aos distúrbios, confrontos e agressões, por meio da transmissão em tempo real de todos os atos dos torcedores. Isso enfrentava uma das principais dificuldades no combate ao problema: a dificuldade de individualização da conduta dos agressores. Como as brigas e confrontos entre torcidas envolvem sempre muitas pessoas, existe sempre o problema de identificar os indivíduos responsáveis, o que leva a punições e sanções para os clubes ou torcidas organizadas.[4]

A REALIDADE NO BRASIL

No Brasil, após grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a maioria dos grandes estádios sofreu alterações que eliminaram as gerais, onde os torcedores ficavam de pé, melhoraram a infraestrutura do controle de entrada e saída dos torcedores e eliminaram as grades que os separavam dos gramados. Os pontos e vias de acesso às arenas esportivas também foram aprimorados. Mas ainda sofremos com os problemas dos confrontos entre as torcidas.

Nesse sentido, podemos avaliar as diferenças entre os hooligans e as torcidas organizadas brasileiras. Na verdade, nesse caso, estamos em vantagem em relação aos ingleses, porque os hooligans, ao contrário das torcidas no Brasil, não utilizam uniformes, símbolos ou bandeiras que os identifiquem como membros de organizações de torcedores. Da mesma forma, não possuem sedes para reuniões. Ou seja, gozam de um anonimato muito maior do que os membros de torcidas organizadas, tornando ainda mais difícil sua identificação por parte das autoridades.

“Os hooligans estão camuflados, ou seja, não possuem vestimenta diferenciada dos demais torcedores. Dessa forma, estão diretamente vinculados ao clube, diferentemente das torcidas organizadas, cujos membros vestem a camisa da torcida e não a do clube (PALHARES; SANTIAGO; SCHWARTZ; TERUEL; TREVISAN, 2002, p.189).”

Nos atos de violência no futebol, uma variável é quase absoluta: a participação de torcidas organizadas, levando à crença de que são o único elemento responsável pelo problema. Não podemos negar que elas são parte importante da questão, mas não a única razão de sua existência.

Diferente de muitos autores, acredito que a extinção dessas organizações traria grandes benefícios para o esporte no Brasil. Mas essa medida seria adequada? Acabar com as torcidas e outras agremiações seria uma ação extremamente autoritária e ilegal, infringindo o direito constitucional à livre associação. Ou seja, não é uma solução viável.

O grande problema é que as soluções apresentadas no Brasil são quase sempre medidas reativas, com efeitos imediatistas, mas que não resolvem o problema no longo prazo. Além disso, constituem-se, na maioria das vezes, em punições difusas e de caráter coletivo: jogos com torcida única, punições aos clubes (como as aplicadas ao Sport e ao Santa Cruz), interdição de estádios, perda de mando de campo e sanções às torcidas organizadas. Apesar de seus efeitos imediatos, essas medidas deixam de atingir o principal foco do problema: as pessoas que cometem agressões, incitam confrontos e inflamam os grupos organizados.

Para uma resolução definitiva do problema, é fundamental que se identifique e se puna adequadamente os indivíduos. Como no caso da criminalidade comum, a ausência de punição severa é um fator determinante para o incentivo do comportamento antissocial e violento. Essas pessoas precisam ser identificadas, processadas e, de alguma forma, impedidas de participar de eventos desportivos. Nos casos mais graves, devem receber punição penal.

Um passo evidente nesse sentido seria a identificação ou o cadastramento de todos os membros de torcidas organizadas. Isso, aliado a um sistema de identificação facial nos estádios, permitiria aos organizadores do evento impedir o acesso de figuras reincidentes em brigas e confrontos nos estádios ou em embates entre torcidas, bastando, para isso, um cadastro dos maus torcedores.

Atualmente, esse tipo de tecnologia está disponível e poderia ser implementado com um custo aceitável por parte dos clubes, federações e administradoras dos estádios, pelo menos para os jogos das principais divisões do futebol.

Mas, em um país onde até traficantes e assassinos parecem ser beneficiados por um sistema de justiça leniente, estamos condenados a ver reedições dos eventos ocorridos no Recife, impedindo que o esporte mais popular e amado do país possa gerar riquezas e alegrias em seu potencial máximo.

No entanto, nem tudo está perdido. Nos últimos anos, já avançamos muito, com a modernização das praças desportivas, a implementação do Estatuto do Torcedor e a especialização de efetivos policiais para atuar no controle de multidões em eventos desportivos. Mas a verdade é que somente a punição individualizada e a exclusão dos maus torcedores podem reduzir os níveis de violência relacionada às torcidas de futebol a patamares adequados ao país.

A experiencia internacional nos mostra que o planejamento de políticas de longo prazo, a reestruturação das arenas e a punição dos delitos relacionados as torcidas é o único caminho para reestabelecer o controle sobre as atividades dos torcedores e manter o futebol como um espetáculo positivo para a sociedade.


[1] Tragédia do Pacaembu que chocou o Brasil em 1995 completa 20 anos na quinta-feira – https://www.folhavitoria.com.br/esportes/tragedia-do-pacaembu-que-chocou-o-brasil-em-1995-completa-20-anos-na-quinta-feira/

[2] Violência no futebol: relembre como a Inglaterra solucionou casos de hooliganismo – https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/07/11/relembre-como-inglaterra-solucionou-casos-de-hooliganismo-e-violencia-no-futebol.ghtml

[3] Relatório Taylor: a revolução no futebol inglês em forma de escrita – https://premierleaguebrasil.com.br/relatorio-taylor-futebol-ingles/

[4] Relatório Taylor: a revolução no futebol inglês em forma de escrita – http://repositorio.fdv.br:8080/bitstream/fdv/400/1/FRANCISCO%20FONTANA%20REISEN.pdf